terça-feira, 3 de junho de 2008

Ninguém matou Daudt!

Ninguém matou Daudt!, por Pedro Ruas*

Existem determinadas circunstâncias que, pelo absurdo com que concretizam nossa realidade, trazem para toda a sociedade um sentimento da maior perplexidade. Esse é o caso, precisamente, do homicídio que tirou a vida do jornalista e deputado estadual José Antônio Daudt, há quase 20 anos.

No dia 4 de junho de 1988, Daudt foi fulminado por disparos de arma de fogo em frente a sua residência. Realizado inquérito policial, foi indiciado o então deputado estadual Antônio Dexheimer, que foi absolvido em um rumoroso julgamento acompanhado por boa parte da população gaúcha e brasileira. Desde aí, algumas investigações foram iniciadas e logo encerradas, sem quaisquer conseqüências práticas ou novos indiciamentos, iniciando-se um longo período de ação do tempo - e inação humana - em favor da impunidade.

Assim, considerando-se as normas vigentes em nosso Código Penal, mais precisamente as que constam nos artigos 109 e 110, tem-se que a prescrição para o crime que, em abstrato, tem pena privativa de liberdade superior a 12 anos (como é o caso do homicídio), opera-se em 20 anos. Sobre prescrição penal, aliás, não é demais registrar que somente ao Estado cabe o poder/dever de punir quem transgride a lei e que esse mesmo Estado perde a capacidade/obrigação de punir ao não exercê-la durante determinado lapso temporal.

Ora, como o bárbaro crime que vitimou o famoso jornalista ocorreu em 4 de junho de 1988, a prescrição penal consuma-se, segundo nossa legislação, às 24h do próximo dia 3 de junho de 2008, o que equivale a dizer que, a partir dessa data, ninguém mais poderá ser punido pela morte de José Antônio Daudt. Isso é estarrecedor, injusto e inaceitável? Ora, claro que sim, porque com certeza os tiros assassinos não foram disparados por uma arma sozinha. Alguém a empunhava, apertou seu gatilho mais de uma vez e, a partir da próxima terça-feira, para sempre ficará impune, seja quem for. Por outro ângulo de análise, é assustador pensar que, se o deputado e jornalista famoso pôde ser morto sem qualquer identificação de culpados, o que pode acontecer quando as vítimas são menos (ou nada) famosas, ou socialmente importantes, que é o caso da grande maioria da população?

A meia-noite do dia 3 de junho será marcada, portanto, como um trágico atestado da incapacidade das nossas instituições e também como um alerta seriíssimo para que o futuro, com relação a outras vítimas, consiga ser diferente. No presente, a nossa geração terá que conviver definitivamente - e de forma bastante envergonhada - com a realidade cruel de que, pelo menos para efeito de punição, ninguém matou Daudt.

*Advogado

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