Problemas exigem soluções. Porém, às vezes soluções para grandes problemas passam por soluções de problemas menores. Em contrapartida, contrapõem-se soluções de pequenos problemas com soluções estruturais, que envolvem uma série de problemas pontuais. Somente a união destas soluções pontuais que apontaria para uma solução estrutural. A organização da sociedade envolve o equilíbrio de uma série de fatores. Deve se conjugar uma educação de qualidade para todas as crianças, um sistema de saúde que atenda as demandas de toda a população, um sistema normativo que assegure direitos mínimos aos trabalhadores, um sistema econômico que assegure acesso a renda por seus próprios meios a todas as camadas sociais e etc. A sociedade apenas funciona na sua plenitude com a conjugação em perfeito funcionamento de todas estas demandas.
Entretanto, para cada uma destas demandas funcionar a contento, surge um espectro de exigências sociais de menor abrangência, a qual, por sua vez, se reduz, como num espiral decrescente, até os problemas mais simples dos nossos meios sociais. A sociedade precisa buscar a solução dos problemas que surgem para o reto funcionamento de todas as demandas, porém as soluções não podem ser (e não são) conflitantes. Não podemos hierarquizar os desafios que temos para conquistar uma sociedade justa e organizada.
Os problemas estruturantes da saúde não são maiores ou menores que o sarampo do meu vizinho. Podemos considerar mais importante, como marco ou conquista, solucionar o problema do acesso gratuito a atendimento médico de qualidade. Porém, não podemos, em busca deste ideal, dar as costas para as pessoas que morrem diariamente pelo mau atendimento nos hospitais públicos. São espectros da organização social que se inter-relacionam, mas que não estão em conflito, nem em ordem hierárquica de saneamento. Em outras palavras, não é necessário melhorar todo o sistema de saúde para curarmos o vizinho doente. Muitos dirão: “não podemos nos focar no vizinho doente, milhões de pessoas não Brasil não têm acesso a saúde. Precisamos melhorar o atendimento de toda a população.” Esta posição, que a primeira vista parece inofensiva e até ter certa coerência, é a razão do retrocesso que existe na nossa organização social. É uma posição inadequada e amplamente democrática. Isto porque atinge as diversas classes sociais e os mais variados grupos políticos. Desde militantes de ultra esquerda até os setores mais conservadores da sociedade.
Alguns, no entanto, invertem a ordem de valoração. Estabelecendo como prioridade problemas pontuais e esquecendo os problemas estruturais. Todavia, estas pessoas não são o foco principal da nossa abordagem, pois não merecem maior reflexão filosófica. Tratam-se de pessoas individualistas e com pouco poder de reflexão e raciocínio, razão pela qual preferimos simplesmente registrar a sua existência sem uma maior análise das suas razões.
O vício objeto da presente análise é muito mais controverso, pois advém de pessoas com certo poder de discernimento e com grande capacidade crítica e reflexiva. Não podemos olvidar que muitas vezes ocorre, também, como reflexo do individualismo social que acomete a sociedade capitalista moderna. Isto porque ao colocarmos em abstrações a solução dos problemas pontuais, ficamos impedidos de tomar ações imediatas, pois todas elas seriam supostamente ineficazes. Dizem: “do que adianta se envolver em política se o sistema já está todo corrompido”. Sem perceber que seria o mesmo que dizer: “de nada adianta limpar as ruas se logo estarão sujas de novo”. Ou seja, não passam de teorias fundamentadas apenas para justificar a sua omissão ante os problemas sociais que assolam o país.
Portanto, pretendemos analisar uma manifestação individual que é extremamente prejudicial à sociedade e está fortemente disseminada. Os “justificadores da inoperância”, como pretendemos chamar, são entraves ao desenvolvimento e a participação ampla da sociedade, sendo, por conseguinte, entrave também à democracia.
Estas justificativas são usadas, num primeiro momento, com propriedade, vez que direcionam para os problemas estruturais as forças de quem realmente se envolve na melhoria da sociedade. Por outro lado, mantém diversos problemas pontuais se perpetuando escondidos atrás de uma solução estrutural que nunca ocorre.
Os “justificadores da inoperância” também alimentam a falsa idéia de que os problemas devem ser atacados em ordem de “prioridades” e que não podem ser solucionados concomitantemente. É correto dizer que o problema estrutural da saúde, por exemplo, é mais importante que a doença do vizinho, mas isto não significa uma ordem necessária de solução. No entanto, também não precisamos dizer que é preciso, em primeiro lugar, combater o problema de saúde do vizinho para, aí então, buscar-se a solução do problema estrutural da saúde no país. Esta ordem numérica (ou cronológica) simplesmente não existe. A sociedade não funciona numa ordem linear de acontecimentos. É preciso se estabelecer uma ordem de ações corretas e necessárias e colocá-las em prática ao mesmo tempo, sem preferências ou hierarquias.
A fim de demonstrar com clareza no que consistem os justificadores da inoperância, exemplificaremos alguns casos onde eles são utilizados com freqüência na nossa sociedade:
- Aborto:
Problema: milhões de jovens pobres engravidam precocemente e não têm condições de criar os seus filhos e outras milhões morrem anualmente em clínicas de aborto clandestinas;
Solução: legalização do aborto;
Justificador da Inoperância: “devemos educar as jovens, dar-lhes condições de vida digna, investir em anticoncepcionais e etc. e não legalizar o aborto”.
- Drogas:
Problema: ao consumir drogas se está financiando o tráfico, que mata milhões de pessoas, principalmente crianças que são “recrutadas” pelos traficantes nas favelas para trabalharem para eles;
Solução: parar de usar drogas;
Justificador da Inoperância: usuário de drogas afirma que é a favor da legalização das drogas e que, com a legalização, o problema supramencionado seria solucionado.
- Sistema de Cotas:
Problema: uma ínfima parte de negros e pobres tem acesso à universidade no Brasil;
Solução: criar um sistema de cotas, no qual obrigatoriamente estes grupos teriam assegurado o acesso à universidade;
Justificador da Inoperância: devemos investir na educação básica pública de qualidade, para que os jovens oriundos de camadas mais baixas possam competir em igualdade de condições com os demais.
- Violência:
Problema: devido ao alto índice de desemprego muitas pessoas buscam sobreviver através do crime, o que coloca a nossa sociedade numa condição de total insegurança e medo pela crescente onda de violência que isto acarreta;
Solução: é um problema complexo que exige soluções de curto, médio e longo prazo. Porém, de forma imediata, é preciso combater a violência com um policiamento forte e estruturado, com profissionais bem remunerados e bem equipados;
Justificador da Inoperância: não deve se combater a violência com repressão, mas com crescimento econômico e maciço investimento em educação.
- Terceiro Setor (ONG’s de ajuda ao próximo, esmolas e outras assistências privadas):
Problema: existem nas capitais do país milhões de pessoas morando nas ruas, sem meios para sua sobrevivência, passando fome e frio;
Solução: ainda que parcial, uma solução imediata é apresentada por ONG’s que fornecem refeição, abrigo e outras assistências para estas pessoas;
Justificador da Inoperância: é preciso gerar empregos para que estas pessoas busquem a sua subsistência por seus próprios meios, sem depender dos outros.
Pode-se notar que os Justificadores da Inoperância não são, na maioria dos casos, posições equivocadas. E é justamente por isso que devemos combatê-los com afinco. Isto porque, como eles muitas vezes se apresentam como a solução correta para determinados problemas, esquecemos das medidas imediatas para amenizá-los. Dependendo da retórica em que é utilizado, tais argumentos podem se apresentar não como solução de longo prazo, mas como justificador de uma não-ação (omissão/inoperância). Assim, o que num primeiro momento deveria auxiliar para a solução de um problema, acaba o super-dimensionando, vez que minimiza as suas ações paliativas. Este entrave é verificado, por exemplo, quando queremos combater o crime. O crescimento econômico e o investimento em educação são formas eficazes de reduzir a criminalidade a longo prazo. Porém, se não combatermos o problema de forma imediata o seu crescimento competirá com as medidas de longo prazo adotadas para reduzi-lo. Esta competição improdutiva até pode ser vencida por estas medidas estruturais de longo prazo, todavia, não há dúvidas de que se fossem conjugadas as medidas pontuais e imediatas com aquelas estruturais, obter-se-ia melhores resultados e de forma mais rápida.
Por outro lado, na maioria das vezes a solução de longo prazo não está sob o poder das mesmas pessoas que podem oferecer uma solução de curto prazo. Por exemplo: uma pessoa comum não tem o poder de gerar crescimento econômico e investimento em educação, mas pode ajudar um mendigo com um prato de comida. Esta pessoa pode, ainda, ingressar para a política e militar em busca dos objetivos estruturais. Neste caso, não poderá se dizer que ela é inoperante. Porém, se ela não faz absolutamente nada, tampouco concede um prato de comida para quem precisa, todos os argumentos porventura utilizados pela mesma para defender a sua atitude serão “Justificadores de Inoperância”.
Portanto, quando verificarmos em discursos, entre falácias e retóricas, a presença dos “Justificadores da Inoperância”, devemos, de plano, refutá-los. Tais justificativas são totalmente contraproducentes à evolução da nossa sociedade. Devemos nos pautar em princípios corretos e com bases sólidas. Os Justificadores nos impedem de tornar o futuro em presente, pois isto somente ocorrerá com ações, sendo que são estas as mais afetadas por tais justificativas. Qualquer argumentação que pregue a omissão, transferindo a solução dos problemas para outrem, ou, em contrapartida, pretenda soluções incertas e para um futuro distante, não pode ser considerada válida. Devemos sempre insistir que soluções que se complementam não podem se excluir e que soluções parciais sempre agirão em benefício da solução definitiva. È preciso ter claro quais soluções podem ser alcançadas e em que prazo, para, neste interregno, agirmos em outras frentes buscando amenizar o impacto causado pelos problemas atacados.
Assim, a união da sociedade ativa e a crítica feroz à sociedade passiva devem ser fortalecidas, sendo que, para isso, precisamos atacar as teses pseudo-intelectuais da filosofia individualista e comodista pós-moderna. Os “Justificadores da Inoperância” é a principal entre estas teses, cujo único intuito é abrandar eventual crise de consciência mediante uma fundamentação que justifique a omissão de parte da sociedade em lutar por um mundo mais justo.