segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

ESMOLA

Da Esmola ao Sofá – reflexões sobre o individualismo moderno.


Entre os meios mais “cultos” da nossa sociedade podemos verificar a existência de uma série de “lugares comuns”, idéias que (quase) todos comungam, defendem e julgam até absurdo que se contrarie. São pessoas que compartilham os mesmos ambientes, a mesma classe social e consomem as mesmas informações. Não chegam a ser cultos – deveriam estudar um pouco mais e ver menos televisão para chegar a tal –, mas não podem ser ignorados, pois formam a opinião da maior parte da população, esta sem o mesmo poder de discernimento.
Estas idéias, ou opiniões, que vão aos poucos tomando conta da maioria da população, são como vírus em mentes sem antivírus. Elas entram nas mentes de todos sem objeção e, o que é pior, sem reflexão. Ao ponto de, depois de algum tempo, se tornarem como “imperativos categóricos”, relembrando Kant. Podemos citar alguns exemplos, como a idéia de que o aborto tem que ser legalizado, assim como o casamento entre gays e as drogas. Com o estrondoso sucesso do filme Tropa de Elite, surgiu o grupo dos drogados com remórcio, que sonham em plantar maconha para o próprio consumo e, assim, não financiar o tráfico.
Algumas destas “idéias comuns”, como pretendo chamar, são fruto de grande reflexão, sua origem é científica e o resultado muito positivo para sociedade. Porém, o problema é quando estas idéias começam a gerar demagogias, passando a ser aceitas com fins não tão solidários. Podemos aplicar isto ao exemplo do drogado que utiliza a defesa da legalização das drogas como justificativa para seguir financiando o tráfico de drogas. É uma situação de comodismo, ou, individualismo. Eles sabem que financiam o tráfico, mas, para abonar a sua conduta, dizem que são defensores da legalização das drogas. Tal posição, firme porém inerte, é utilizada como abonador da conduta adotada na prática, esta totalmente condenável e prejudicial à sociedade.
Mas o que pretendo abordar neste texto não é a questão das drogas, e sim outra que não é restrita a um pequeno grupo destes “formadores de opinião”, pseudo-intelectuais da sociedade televisiva moderna. A situação de penúria total de parte da população faz com que tenhamos que refletir com um pouco mais de cautela sobre o que se tornaram as “idéias comuns” formadas em torno da esmola.
Vemos uma grande campanha contrária a esmola. A “idéia comum” propagada pelas classes “A” e “B” é que “dar esmola é incentivar a vagabundagem”. Então, o gesto mais singelo e ingênuo de ajuda ao próximo passou a ser condenado com fervor pela “opinião” moderna. Ao darmos esmola estamos fazendo com que o pedinte se acomode e não “busque o peixe” com as próprias mãos. “Temos que ensinar a pescar”, dizem, “e não entregar o peixe”. Com relação às crianças, a esmola faz com que os pais não mandem os seus filhos para a escola e sim para as sinaleiras tentar ajudar na renda familiar.
Confesso que também tinha aderido a esta “idéia comum”, pois seus argumentos, num primeiro momento, parecem bem plausíveis. Está certo, não temos que dar esmola. Temos que dar condições das pessoas adquirirem cidadania, buscando o seu alimento com o seu trabalho. Esta é melhor forma de dignificar um homem. A esmola apenas posterga o problema e não o resolve. Até aí tudo bem. Porém, a situação fica um pouco mais complexa quando nos deparamos com duas questões básicas que advém deste raciocínio.
Eu estava numa destas tantas sinaleiras da vida quando um rapaz com uns 30 anos me abordou pedindo esmola. Logo lhe ignorei. Ora, já era a terceira sinaleira consecutiva e o terceiro pedido de esmola consecutivo. Como manda a cartilha da classe média moderna, recusei asperamente todos os pedidos. “Que vão trabalhar!” Não é o que todos pensam? No entanto, não sei se estava mais sensível naquele dia, mas olhando para a pobreza escancarada daquele senhor, comecei a refletir. Como aquele homem que, com certeza, deve ter sido criado em meio a pobreza e a marginalia, que talvez não tenha tido nenhuma base familiar, que não tem família, não tem casa, não tem dentes, ou seja, não é cidadão, vai competir por um espaço no terrível mercado de trabalho atual? Como podemos exigir que arrumem emprego pessoas que foram por toda vida marginalizadas num país onde mais de 10% da população economicamente ativa está desempregada? Os dados de desemprego no Brasil já nem computam estes pedintes. O IBGE apenas relaciona quem está ativamente buscando emprego. Estes já desistiram há muito tempo. Para eles não há lugar nem entre as estatísticas. Não são mais parte da sociedade, são pessoas que todos querem extirpar do dia-a-dia das metrópoles. São filhos renegados de uma sociedade que os criou.
E no mercado informal? Há espaço para eles? Pelo contrário, os camelôs que são perseguidos atualmente são potenciais pedintes nas próximas sinaleiras. Não dar esmolas para crianças que ainda podem ser salvas, como que por milagre, se saírem das sinaleiras e foram para a escola, ainda considero correto. Mas e quanto aos casos que visivelmente não têm mais solução?
Realmente, pensei naquele dia, se todos tomarem a mesma decisão que eu tomei e não derem esmola para este senhor, qual a solução que ele encontrará para sobreviver? O crime é o único caminho possível para a sua sobrevivência. Aquele que hoje aborda o seu carro para pedir 10 centavos é o mesmo que amanhã poderá abordá-lo para levar a sua vida. Talvez 10 centavos seja um valor baixo pelo risco social que está se criando. O crime pela sobrevivência pode ser evitado, basta dar condições sociais para as pessoas existirem dignamente. Quando a sua própria existência está em risco o crime deixa de ser uma questão de caráter, de moral, e passa a ser algo que está acima da própria vontade. A partir daí é como estar na guerra e, se para vencer é necessário tirar a vida de alguém, não há dúvidas de que será feito.
Não se trata aqui de substituir o Estado na sua obrigação de acolher estas pessoas, e até de proteger-nos delas. Trata-se de não esperar uma solução futura, incerta e improvável. É você e o pedinte, frente a frente. Você com todas as oportunidades, com educação, família e tudo a perder. Ele sem nada a perder, rejeitado pela sociedade e pela própria dignidade. Naquele momento você precisa tomar uma decisão que, embora singela, pode afetar todas as relações sociais daí para frente. Você sabe que o Estado vai dar as costas para aquele pedinte, assim como o drogado sabe que as drogas ainda continuarão ilegais no Brasil e que o seu consumo vai continuar financiando o tráfico. Você é tão responsável por aquele pedinte quanto o Estado. Até porque o Estado é composto por você, que o elegeu e tem por dever participar ativamente dele. A nossa omissão e negligência nos tornam responsáveis, não podem justificar a nossa inoperância. Mas aí já partimos para a segunda questão da minha reflexão.
A “idéia comum” sobre a esmola pressupõe que a esmola em si não resolve nada, que devem ser tomadas outras medidas mais eficazes para ajudar os pedintes. Correto. Existem outras formas de auxílio que cada um de nós pode fazer que, para o contexto social, será muito mais benéfico que dar esmolas. Entretanto, as pessoas, em sua grande maioria, prestam algum tipo de auxílio às pessoas carentes? Não estou falando em ligar para o “Criança Esperança” uma vez por ano, ou doar as roupas velhas no inverno. Tais “caridades” não passam de esmolas como outra qualquer. A questão é: qual a percentagem da população que procura ter ações diárias, semanais ou até mensais que ajudem a equilibrar o nosso convívio social? Menos de 1%. Ora, a classe média, que propaga estas “idéias comuns” contra a esmola, dizem que a esmola não vai resolver nada. Porém, a sua intenção não é fazer algo que resolva, em substituição à esmola, e sim se eximir da culpa por não fazer nada, nem ao menos dar uma singela esmola ao pobre indivíduo que não teve as mesmas oportunidades na vida.
Se você considera que a esmola não resolve, tudo bem. Então, o que resolve? O que nós podemos fazer hoje para melhorar a vida destas pessoas? Vamos lá! Mãos à obra. Não se trata disso. A verdade é que eles não querem resolver nada. Querem apenas ficar no seu sofá e não serem importunados. Cercados em suas grades, nos seus prédios e condomínios fechados, o deslocamento pela cidade no seu automóvel é o momento mais tenso das suas vidas individualistas. Aquele breve momento em que o sinal fica vermelho na sinaleira se transforma num portal onde a classe média entra em contato com a realidade em que vive. É quando são tele-transportados para o mundo real, que lhe pede míseros centavos para seguir existindo. Mas, esta ajuda lhe é negada, o vidro é fechado asperamente e o condutor aguarda ansioso o sinal verde, que pode ser comparado à pílula azul de Matrix. É quando você escolhe a ficção. Afinal, porque aquele vagabundo não vai procurar um emprego?


Lito “Tchê” Solé